quarta-feira, 28 de abril de 2010

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"No sossego da minha casa, onde só comunico com o mundo exterior o suficiente para me manter viva, guardo intacto tudo o que sinto por ti. Fechada para o mundo e para os outros, sinto-me cada vez mais só, mergulhada numa escuridão voluntária e estéril que me aplaca a vontade e os sentidos. Com a morte deste amor por ti, morre também uma parte de mim, algo cujos contornos não consigo ainda delinear mas que com o tempo perceberei, quando a alma apaziguada fechar as feridas desta minha dor derrotada e passiva perante o teu silêncio e a tua mascarada indiferença.
Mas é melhor que nunca mais se cruzem os nossos olhares, é melhor que a palavra adeus seja mesmo essa e não outra. Chegámos ao fim do caminho. A partir daqui todas as palavras serão inúteis.
Nunca saberei até que ponto ages com o coração ou apenas com a cabeça. Até que ponto te entregas ou apenas jogas. Até que ponto sentes e ages, ou apenas observas. E é por nunca ter sabido quem és, que um dia te conseguirei esquecer.
Sempre disse que as diferenças iriam servir mais para nos unir do que para nos afastar. Mas agora sei que não. Ao contrário de ti, não sou nem nunca serei espectadora da minha própria vida."

Margarida Rebelo Pinto in Não há Coincidências

"Gosto do teu ar, do teu olhar, da tua forma de andar, das tuas mãos guardadas nas minhas, gosto de te cheirar, de te sentir, de me calar para te ouvir, de me deitar ao teu lado para dormir e depois acordar, depois espreguiçar-me e levantar, e rir e dançar e cantar e cada dia outra vez começar um novo dia a sonhar.


Gosto da tua boca certa e do teu cabelo farto, da tua voz cantada e aconchegante, dos teus beijos longos, dos teus abraços infinitos, das tuas piadas e risadas, dos teus braços à volta do meu, as duas cabeças encostadas, os ombros em paralelo, as pernas dobradas e os pés junto, gosto do teu hálito fresco e do teu sorriso aberto, da tua cabeça arejada e do teu olhar mais secreto, gosto de te ver junto ao meu peito a contar as batidas do meu coração, de sentir que estás sempre perto e sempre estarás, que vives cá dentro e mesmo na ausência, quando só te vejo com os olhos fechados e as mãos juntas em concha, sei que és perfeito, sei que voltarás, sei que estás quase a chegar, que cada minuto que passa é só mais uma etapa na minha espera, por isso espero calada e feliz, e nas letras que transformo em palavras imagino a cor e o sabor, deste amor, deixo-me levar, crescem-me asas e de repente desato a voar, a voar..."

Margarida Rebelo Pinto, in As Crónicas da Margarida

terça-feira, 27 de abril de 2010

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"Mágoa. [...] Está para lá da tristeza, da solidão, do desejo de lutar pelo que já se perdeu, da raiva de não ter o que mais se queria, da pena de ter deixado fugir um grande amor, por ser demasiado grande.


Primeiro grita-se, barafusta-se, soluça-se em catadupas, fazem-se esperas, mandam-se flores, livros sublinhados, convocam-se os amigos para em quórum planearem connosco uma estratégia de recuperação, sente-se aos solavancos e come-se sem mastigar, num torpor raivoso e revoltado. A vida vai mais depressa do que nós, passa-nos por cima e os dias comem-se uns aos outros. Só queremos que o tempo corra para nos apaziguar a dor e acalmar os papos nos olhos.


Depois é o pós-guerra, a rendição, a entrega das armas e as sentenças de um tribunal marcial interior, em que os juízes são a vida e o réu, o que fizemos dela.


Limpam-se os destroços, enterram-se os mortos, tratam-se os feridos que são as nossas feridas, feitas de saudades, desencontros, palavras infelizes e atitudes insensatas, medos, frustrações e tudo o que não dissemos. Há quem se rodeie de amigos, durma com antigos casos, se enrole numa manta de xadrez e se torne o mais fiel cliente do clube de vídeo da esquina. Há quem tome calmantes, absorva vodka em noitadas vazias como uma esponja inútil, se mude outra vez para casa da mãe, ou parta em uma viagem para um local turisticamente muito apetecível.


O pior é quando se chega lá, apetece tudo menos lá ficar. Percebemos que não há longe nem distância para a dor, e que nenhum amante, amigo, mãe, irmão, droga ou bebida matam a saudade do que já fomos ou de quem já tivemos nos braços.


A mágoa chega então, quando o cansaço já não nos deixa sentir mais nada. É silenciosa e matreira, instala-se sem darmos por ela, aloja-se no coração e começa a deixar sinais aqui e ali, dentro de nós. A pouco e pouco sentimos que já não somos a mesma pessoa.


As cicatrizes podem esbater-se com os anos e ser remendadas com hábeis golpes de plástica, mas ficarão para sempre debaixo dos excertos que fazemos à alma.
O cansaço mata tudo. A raiva de não termos quem tanto amámos, a fúria de não sermos donos da nossa vontade, o orgulho de termos perdido quem mais queríamos. Só não mata as saudades e a vontade de continuar a sonhar que um dia pode mudar outra vez e libertar-nos de nós mesmos e do sofrimento, tão grande quanto involuntário, tão patético quanto verdadeiro.


Às vezes, quando a mágoa é enorme e sufoca, vegetamos em silêncio para que ela não nos coma. Fingimos que está tudo bem, rimo-nos de nós próprios perante os outros e até mesmo perante o outro que vive dentro de nós. Tornamo-nos espectadores da nossa dor. Afastamo-nos de nós, do que somos, daquilo em que acreditamos. No fundo estamos a desistir, como quem volta atrás porque tem medo do escuro, vencidos pela desilusão cansadas de esperar em casa que o mundo pare e se lembre de nós.


Mas o mundo nunca pára. Nada pára. A vida foge, os dias atropelam-se, é preciso continuar a vivê-los, mesmo com dor, mesmo com mágoa. Pelo menos a mágoa magoa, faz-nos sentir vivos.


Arde no peito e no orgulho, mas pouco a pouco vai matando a dor.


Torna-se a nossa companheira mais próxima, deixando de nos defender da tristeza que se vai consumindo como uma vela esquecida num presépio morto que uma corrente de ar ou um novo sopro de vida um dia apagará. Mas isso só é possível quando conseguirmos esquecer."

Margarida Rebelo Pinto, in As Crónicas da Margarida